sábado, 15 de agosto de 2020

ROSANE

Rosane acordava cedinho,

De café, pão, queijo , manteiga

Às vezes se regalava.

Rosane acordava cedinho,

Às vezes não tinha nada.



Rosane, a mãe, duas filhas,

Três anos e cinco de idade,

Viviam numa casa pequena, 

No meio de uma favela.

Agarrava alguns dias as filhas,

Ouvia o estampido dos tiros

Quase a vazar as janelas.



Rosane descia o morro,

Se dava a fazer seus biscates:

Lavava, passava e limpava,

Subia levando sacolas

Com carne, cereais, goiabada.



Finais de semana bebia,

Brincava, sorria e dançava,

Gostava de um homem, se dava.

Quando raiava o dia,

Subia o morro, apressada.



Domingo ela ia à igreja,

Orava ardentemente, cantava,

Nem sabia por que é que orava,

Nem sabia por que cantava.



Rosane brincava na noite,

Nem sabia por que brincava.

Rosane sorria na noite,

Nem sabia por que sorria.

Rosane dançava na noite,

Nem sabia por que dançava.



sexta-feira, 5 de junho de 2020

SE EU SOUBESSE



Há coisas que em nossa vida
só trazem dor e tristeza:
soubesse, passava ao largo,
bem longe dos teus encantos.

Devia não ter provado
da água que tu me deste,
do almoço que preparaste,
do vinho que me serviste,
dos versos que me fizeste.

Devia não ter gozado
dos beijos que me beijaste,
do corpo que tu me abriste,
dos olhos com que me olhaste,
delírios que me causaste. 

Hoje, sozinho me vejo
mendigo de algum afeto,
saudoso de nossos dias,
frangalho do que era ontem,
um morto vagando em vida.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

O BAR DA ESQUINA


Lá no bar daquela esquina
Um bebum lamenta a vida
E a mulher que o abandonou.

Num cantinho mais sereno
Um senhor conta uma história
E um rapaz fica a sonhar.

Numa mesa da bodega
Uma moça é tão bonita
E é de a gente se inspirar.

Bem no meio do boteco
Uma outra lembra um samba
E uma marcha de alegrar.

Pelo velho bar inteiro
Eu vi graça e poesia
E só quis viver e amar.

2013

O POETA VAGABUNDO


O poeta vagabundo:
Vagabundo por repudiar trabalho
E também por ser um bardo dos chinfrins,
Já poeta porque inventa frases líricas,
Porque toca, sofre e canta ao violão.

Homenzinho insano, incomum, parece doido,
Já criou costume de parar no tempo
E também no espaço, pra fitar estrelas;
Divagando tanto, ousando fantasias
Que não vi neste mundo nenhum louco acalentar.

Comove-se co'a musa que adentra o bar,
Achega-se a ela e lhe diz galanteios
Com olhos luzentes e tão fascinados,
Que mais parece menino apaixonado.

Quando solitário, acomoda-se à mesa
E consome-se em porre pela morena
Que há bem pouco tempo o deixou
E a linda mulata que o já encantou.

Esse vagabundo, na rua lotada,
É apenas um ser sozinho e tão errante
Que para de repente e faz novamente
Que pare o tempo só pr'ele contemplar
O céu azulzinho do dia de sol.
Esse coisa-à-toa caminha perdido,
Soturno e sem rumo na rua deserta
Quando sua alma é sombria, escura, sem luz.

Despojado, informal, parece esses anjos
Desgarrados dos outros, que ficam bebendo
Nos bares alegres, em vez de ir pro Céu.
Incapaz de acatar, não sabe dar ordens.
Parece um cão solto deitado nas ruas:
Lírico e livre, o que mais ele lembra?
Talvez as cigarras, talvez borboleta, talvez os pardais.


1996


II

(O POETA ENVELHECIDO)


Quem é o poeta que chega
qual vindo de algum devaneio,
saindo de um quarto de vila
com seu violão sob o braço?

Às plenas três horas da tarde,
a grave voz de ressaca,
dedilha uma música antiga
que é de fazer viajar.

Chegando a noite, o poeta,
a língua pesada de bêbado,
relata as histórias e amores
vividos em tempos de lira.

Alguns ouvintes se encantam,
uns outro se enchem de enfado,
mas cria-se um clima na noite
pejado de poesia.

Poeta de brancos cabelos,
de rosto cortado do tempo,
tão jovem porém nos anseios,
intenso em seu doce falar.

Às altas da noite o bar fecha:
os homens urinam nos becos,
e o triste poeta, já trôpego,
caminha pra ir descansar.

Um dia um coma profundo
ou uma cirrose ou infarto
fará que o poeta soturno
não saia do quarto de vez.

2013


III

(O BÊBADO ADORMECIDO)


Quem é esse traste que dorme,
Que fede a fumo e cachaça,
Ressona no quarto sombrio,
Fechado e desarrumado?

É o mesmo poeta que há pouco
Cantava o sorriso da moça,
Dizia que a noite é um negrume
Tão bom de se mergulhar.

Quem é esse velho imprestável
Que rosna o que não se entende,
Enquanto rola na cama,
Num sono agitado de ébrio?

É aquele poeta que disse
Que a tarde é momento divino
De a vida dançar de alegria
E o peito buscar emoções.

Agora é o langanho que dorme,
Que atrai desprezo e chacota
O homem que traz sempre sonhos,
Que sente profundo no peito
As dores e o belo do mundo.

2013


TANTO PAI (CONVERSA ALIENADA)

Vem, m'ermão, beber a nossa cervejinha:
afinal tá tudo certo, e o futuro, garantido:
Deus vai dar todo bem que precisamos
e até mesmo o que não sabemos precisar,

Se rezamos de noite todo dia,
se pecamos muito pouco pra cristãos.

Fique de olho na eleição pra presidente,
pra votarmos no pai mais indicado
e depois nos deitarmos na poltrona,
e deixar que ele trabalhe pra nós todos.

Ô, que vida mais gostosa a vida nossa!
É rezar e votar, depois mais nada,
pra depois colher os frutos merecidos.

Companheiro, veja, o Mengo tá danado!
Carnaval dá Portela com certeza.
Essa noite ouvi um pagode que é uma graça,
fala em bunda  putaria o tempo todo.

A novela me prendeu em casa à noite.
BBB já não sei mais quem que ganha.
Pro Governo do Estado aquele moço.
Não demora a gente volta pra prefeito:
como é bom quando temos tanto pai!

A mulher do Jacinto é uma baiaca,
mas a filha, meu Deus(!), é muito boa(!)
e corneia o marido de montão.
Minha sogra já tá lá pelas tabelas,
meu cunhado, se não erro, come vara.

Deus escreve correto em linhas tortas.
O prefeito só precisa ser festeiro.
Eu adoro de graça esse do Estado.
Presidente que graceja é muito bom.
Ê, Meu Deus, como é bom ter tanto pai!

2014


domingo, 15 de novembro de 2015

OSMUNDO

Naquele lugar tão estranho
de brigas, de armas e ganhos, 
de tudo que existe no mundo
entrou por engano o Osmundo.

Havia bebida de graça,
"bonecas", mulheres na caça,
casais transando na rua,
beldades dançando já nuas.

Num dado momento uma loura
do tipo que os dias doura
lhe trouxe um copo de quente,
chamou-o pro amor, sorridente.

Osmundo ficou num conflito:
ia ou não ia o aflito?
Se aquilo fosse arapuca, 
findasse num tiro na nuca?

Se fosse a bebida truncada,
se a loura com rosto de fada
não fosse às outras idêntica,
não fosse uma dama da autêntica?

Se o chefe do morro descesse,
cismasse com ele e lhe desse
sentença de morte por nada,
ciumento da loura assanhada?

Em pânico Osmundo sofria:
dizer um "sim" não podia,
dizer um "não" não devia,
fugir jamais poderia.

Osmundo acordou urinado,
o peito a pulsar disparado,
jurando que à igreja voltava
e a vida devassa deixava.


ÚNICA MULHER


Não era bonita nem feia,
bem longe da flor da idade, 
mas tinha protusas nádegas, 
as ancas de uma sereia
e era no bar a única.

Os homens a perfuravam 
com seus olghares sedentos,
tornados naquele momento
poetas de ocasião, 
juntando lira e tesão.

alguns a sonhavam na cama,
alguns a queriam mimosa,
fazendo promessas românticas.
Mas todos lançavam olhares
ferventes de aquebrantar.

Divina musa da noite,
bebendo, olhando pro longe,
e os homens, carentes de afeto,
a viam naquele momento
beleza maior do Universo.